quarta-feira, 17 de julho de 2013

Perelman e a Conjectura de Poincaré


O Congresso Internacional dos Matemáticos 2006, que decorreu em Agosto em Madrid, foi largamente dominado pela polémica em torno de Grigori Perelman, o matemático russo que recentemente resolveu a Conjectura de Poincaré, um dos mais famosos problemas matemáticos do século XX. Pela importância do seu trabalho o congresso atribuiu a Perelman uma medalha Fields, o mais prestigiado prémio do mundo da matemática, distinguindo ao mesmo tempo três outros matemáticos --- um alemão, um australiano e um segundo russo. Ao contrário dos outros, porém, Perelman não compareceu à cerimónia e recusou o galardão, o que aconteceu pela primeira vez na história da medalha Fields. Numa entrevista dada posteriormente à revista «New Yorker», Perelman justificou-se dizendo que o prémio «era completamente irrelevante» para ele. «Todos perceberam que se a demonstração está correcta não é necessário nenhum outro tributo».
* Recém-doutorado em matemática em Cambridge.




Muito para além destas polémicas, contudo, a fama de Perelman vem merecidamente da qualidade e importância histórica do seu trabalho. A Conjectura de Poincaré foi formulada no ano de 1904 pelo grande matemático francês Henri Poincaré, e desde essa data que permanecia sem solução. Durante cem anos ninguém conseguiu decidir se a conjectura era verdadeira ou falsa, e isto apesar dos esforços de gerações de matemáticos para chegar a uma resposta. Perelman demonstrou em 2002/2003 que a conjectura é verdadeira, no que foi provavelmente o primeiro grande acontecimento na matemática do século XXI. Embora dificilmente venha a ter algum impacto na vida dos contribuintes, e por agora mesmo nas outras ciências mais teóricas, a repercussão desta solução no meio matemático é enorme, alargando o conhecimento actual sobre espaços e geometrias de dimensão três. No mínimo, e como frequentemente sucede com problemas desta envergadura (relembre-se o caso de Andrew Wiles e do último teorema de Fermat, nos anos 90), a própria história da busca da solução é interessante.

Uma estrela reclusa

Grigori Perelman, de 40 anos, é um matemático recluso e misterioso que até Dezembro de 2005, altura em que se demitiu, trabalhava no Instituto Steklov de Matemática, em São Petersburgo. Apesar da atenção que sobre ele tem recaído desde que apresentou a sua solução, quase sempre recusa as entrevistas e só muito raramente fala em público. Há cerca de dez anos, no seu início de carreira, teve posições de visitante em várias universidades americanas, onde desenvolveu algum trabalho reputado de «brilhante» por colegas. Depois voltou para a Rússia e desapareceu. Durante oito longos anos Perelman permaneceu silencioso em São Petersburgo, sem publicar artigos e sem que se soubesse em que trabalhava. O seu nome caiu no esquecimento.

Em Novembro de 2002, porém, o «iceberg» veio à superfície, quando Perelman publicou num arquivo científico da internet um primeiro artigo sobre o seu trabalho. Neste artigo Perelman desenvolvia uma estratégia de ataque ao problema originalmente proposta pelo matemático americano Richard Hamilton. Começou a correr na comunidade matemática que, com estes novos resultados, Perelman estava perigosamente próximo de provar a inatingível Conjectura de Poincaré. Desde então o trabalho de Perelman --- aquele artigo de 2002 e outros dois que publicou em Abril de 2003 --- tem sido sujeito a um escrutínio intenso. Ao longo dos últimos quatro anos matemáticos de todo o mundo, peritos nas técnicas e dificuldades da Conjectura de Poincaré, esforçaram-se arduamente por perceber os elaborados métodos de Perelman, examinaram em detalhe os seus argumentos, procuraram falhas nos seus raciocínios. No fim de contas ficaram satisfeitos, as dificuldades foram sempre ultrapassadas e as dúvidas esclarecidas. Foi portanto assim, gradualmente, que a solução de Perelman foi aceite pela comunidade matemática, e foi também assim que, passados cem anos, a Conjectura de Poincaré passou à categoria de teorema, que significa «afirmação demonstrada».

A Conjectura de Poincaré

Mas afinal, qual é o conteúdo da Conjectura de Poincaré ? Em primeiro lugar, para responder a esta pergunta, comece-se por dizer que a conjectura é uma questão sobre topologia, o ramo da matemática que estuda as propriedades geométricas de superfícies e espaços que não se alteram quando estes espaços são deformados de forma progressiva. Isto quer dizer, por exemplo, que aos olhos da topologia as superfícies de uma bola de futebol e de uma bola de râguebi são indistintas, pois são superfícies de dimensão 2 que podem ser obtidas uma da outra por deformação. Ao invés, a superfície de um donut já é distinta das anteriores, pois apesar de ter também 2 dimensões, já tem um buraco no meio, e por muito que a superfície seja deformada (sem rasgar, partir ou colar), não se consegue transformá-la na superfície de uma bola, pois o buraco permanecerá sempre lá.

Uma outra propriedade que distingue a superfície de uma bola da de um donut é a seguinte: imagine-se que se desenha um contorno fechado na superfície da bola; então este contorno fechado pode sempre ser progressivamente encolhido até ficar um só ponto; na superfície do donut já não é assim, pois se o contorno for desenhado de forma a dar a volta ao buraco central, então é impossível encolher o contorno para além do tamanho do buraco, e portanto não é possível reduzi-lo a um só ponto. De facto, pode-se demonstrar matematicamente que a superfície de uma bola, ou esfera, é a única superfície fechada de dimensão 2 na qual todos os contornos ou caminhos desenhados podem ser encolhidos até ficarem um só ponto.

A Conjectura de Poincaré é exactamente esta mesma questão, mas para superfícies e espaços de dimensão 3 (que já são mais difíceis de visualizar, mas ainda fazem sentido matematicamente): «Será que a superfície a 3 dimensões de uma esfera é o único espaço fechado de dimensão 3 no qual todos os contornos ou caminhos podem ser encolhidos até chegarem a um simples ponto ?». Este é, grosso modo, o aparentemente simples conteúdo da conjectura, e foi a esta questão que Perelman respondeu agora afirmativamente, demonstrando porquê. Claro que toda a dificuldade do assunto está nesta última parte, no demonstrar porquê. Com efeito, já antes do trabalho de Perelman, quase todos os peritos na Conjectura estavam convencidos que a resposta era sim, só que não conseguiam prová-lo. Numerosas falsas demonstrações foram aparecendo ao longo dos anos, apenas para logo depois se verificar estarem incompletas ou erradas. Daqui se compreende toda a demora e cuidado postos na verificação da solução de Perelman.

Um aspecto curioso desta história é que, em todas as dimensões diferentes de 3, há já muito tempo que os resultados análogos à Conjectura de Poincaré tinham sido demonstrados. De facto, os resultados em dimensão 2 descritos atrás são clássicos, já conhecidos na época de Henri Poicaré; em 1960 o americano Stephen Smale demonstrou a conjectura para espaços de dimensão maior ou igual a 7, e mais tarde para maior ou igual a 5; finalmente em 1982 o caso da dimensão 4 foi resolvido por Michael Freedman, e requereu uma solução de longe mais complicada que todas as anteriores. A dimensão 3, no entanto, a dimensão que tinha sido originalmente estudada por Poincaré, permanecia inexpugnável. Este facto levou o «Clay Mathematics Institute», EUA, a eleger no ano 2000 a Conjectura de Poincaré como um dos sete problemas matemáticos mais importantes por resolver, e a instituir um prémio de um milhão de dólares para quem encontrasse uma solução. Tudo indica o prémio seja agora oferecido a Perelman (provavelmente em parceria com Hamilton), apesar de ele até agora não ter demonstrado qualquer intenção de o reclamar.

Por fim, no que é talvez o aspecto mais extraordinário desta história, o trabalho que Perelman apresentou em 2002/2003 vai muito para além da demonstração da Conjectura de Poincaré. De facto os métodos de Perelman permitem provar um resultado muito mais geral e poderoso, designado por Conjectura de Geometrização. Esta conjectura foi formulada no fim dos anos 70 pelo matemático americano W. Thurston, e propõe um esquema mais ou menos completo de classificação de todos os espaços de 3 dimensões. Em relação a este resultado mais geral, o problema da esfera aparece como apenas um caso particular, pelo que ao demonstrar a Conjectura de Geometrização Perelman prova automaticamente a Conjectura de Poincaré. O avanço da matemática contido nos trabalhos de Perelman é, portanto, gigante.

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