Há menos de 50 anos, a Humanidade acreditava ter uma boa imagem sobre a origem, composição e até mesmo dos prováveis futuros do Universo que nos rodeia. Do Big Bang à estrutura interna dos átomos, as teorias e experimentos pintavam um retrato, se não totalmente fiel, ao menos capaz de explicar fenômenos desde as gigantescas escalas astronômicas ao microcosmo das partículas subatômicas. Em menos de duas décadas, porém, novas observações e descobertas mostraram que este quadro está longe de completo: mais de 95% de tudo que existe no Cosmo são matéria e energia escuras, cujas naturezas permanecem desconhecidas. A primeira é uma misteriosa substância cuja gravidade atua como uma "cola" universal, ajudando, entre outros efeitos, a manter as estrelas presas às galáxias. Já a segunda, uma força ainda mais misteriosa, parece contrabalançar o efeito gravitacional da matéria escura na escala cosmológica, fazendo com que a expansão do Universo se acelere.
O desafio de estar diante de tamanho desconhecimento, no entanto, não desanimou os cientistas. Pelo contrário, pesquisadores de várias áreas se uniram em torno de experiências que começam a lançar uma luz nesta escuridão, principalmente com relação à natureza da matéria escura. Entre eles está Samuel Ting, que veio ao Rio esta semana participar da 33ª Conferência Internacional de Raios Cósmicos (ICRC, na sigla em inglês). Vencedor do Prêmio Nobel de Física de 1976, Ting lidera uma colaboração internacional de mais de 600 especialistas de 60 instituições espalhadas por 16 países que tem como peça central um equipamento instalado do lado de fora da Estação Espacial Internacional (ISS) em 2011 a um custo de US$ 2 bilhões. Batizado Espectrômetro Magnético Alfa (AMS, também na sigla em inglês), ele procura detectar e medir raios cósmicos, isto é, partículas energéticas que permeiam o espaço, antes que eles interajam com a atmosfera terrestre.
De acordo com uma das teorias mais aceitas atualmente, a matéria escura seria composta por um novo e exótico tipo ou família de partículas chamadas WIMP (sigla em inglês para "partículas maciças de fraca interação" que ao mesmo tempo brinca com esta característica delas, pois a palavra também pode ser traduzida como "fracote"). Ao se encontrarem, as WIMPs aniquilam-se mutuamente, liberando energia e pares de elétrons e suas antipartículas, os pósitrons. Assim, isso provocaria um aumento na quantidade de raios cósmicos formados por pósitrons com determinadas "assinaturas" de energia que o AMS poderia detectar.
Em abril passado, Ting apresentou os primeiros resultados do experimento, que embora tenham servido de indicação de que a teoria pode estar certa, não foram suficientes para comprová-la. Agora, na conferência no Rio, o cientista mostrou mais dados que caminham no mesmo sentido. Segundo ele, as partículas detectadas pelo AMS parecem estar vindo de todas as direções, o que é o esperado se forem os restos da aniquilação de WIMPs, já que elas também podem ser produzidas por outros processos astrofísicos, como em pulsares, remanescentes superdensos de estrelas mortas que giram rapidamente e são dotados de poderosos campos magnéticos, atuando como aceleradores de partículas cósmicos que emitem ondas de radiação a intervalos regulares a partir de suas localizações determinadas no espaço.
Além disso, o acúmulo de dados permitiu uma ampliação do espectro dos níveis de energia dos pósitrons detectados e analisados, já que quanto mais alta sua energia, mais raros são eles são. Até abril, havia sido verificado um "excesso" destas partículas na faixa de 10 a 250 gigaeletronvolts (GeV), intervalo que agora aumentou para de 10 a 350 GeV. Ting explica que a esperada prova de que a matéria escura é feita de WIMPs virá quando for observada uma queda brusca no número de pósitrons de alta energia detectado, o que ainda não aconteceu. Assim, nos próximos dois anos ele espera ampliar o espectro analisado até 600 GeV, chegando ao limite útil do AMS, de mil GeV, ou um teraeletronvolt (TeV), ao longo dos 20 anos que o equipamento deverá ficar funcionando no espaço.
- Não sabemos quando ou mesmo se esta queda vai acontecer dentro deste limite, mas, se ela acontecer, já mostramos que o AMS vai poder detectá-la - diz Ting. - Acumulamos cada vez mais dados, mas só anunciaremos a detecção de uma prova sobre a natureza da matéria escura o mais tardiamente possível. Não temos competição e contamos com um instrumento muito preciso, então podemos ser muito cautelosos e pacientes. Temos milhares de teorias, mas a menos que tenhamos observações e medições, elas não significam nada. Assim, nosso trabalho é obter as medidas mais acuradas possíveis e nunca, nunca favorecer uma teoria. Não sabemos o que vamos encontrar, mas se não procurarmos, nunca saberemos.
Mas enquanto Ting procura por sinais da matéria escura no espaço, outros cientistas estão buscando pela misteriosa substância em terra, ou, mais precisamente, bem abaixo dela. Outro experimento, instalado a dois quilômetros de profundidade em uma mina operada pela empresa brasileira Vale, no Canadá, pretende detectar as eventuais colisões de WIMPs com núcleos de átomos de matéria "comum". Batizado Snolab, ele usa imensos tanques cheios de argônio e outros gases, resfriados até ficarem líquidos, que emitem luz, calor ou outras formas de radiação caso seus átomos sejam atingidos pelas partículas de matéria escura. Mas, assim como com o AMS, a experiência é um exercício de paciência e precisão, conta Nigel Smith, diretor do Snolab.
- Os sinais são muito tênues e raros - diz. - Esperamos detectar apenas uma colisão por ano com a uma tonelada de material dentro dos tanques, então temos que ser muito pacientes. Além disso, acreditamos que as partículas de matéria escura se movem muito lentamente, o que significa que estas colisões vão emitir muito pouca energia. Por isso, uma das nossas maiores preocupações são as radiações naturais, não só dos raios cósmicos como dos materiais ao nosso redor. Usamos a própria Terra como escudo contra os raios cósmicos, mas até o concreto nas cavernas onde estão os detectores contém urânio, que mesmo em uma parte em um milhão emite radiação suficiente para perturbar a experiência, enquanto só o pouco potássio radioativo do suor de uma mão pode mascarar qualquer sinal eventual.
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